terça-feira, 20 de julho de 2010

EDUCAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL

A educação deveria ser um espaço reservado para reduzir a grande desigualdade social, que perdura por longos séculos no Brasil, sem solução à vista. No entanto, como deixa claro os números do Enem, o grupo de pessoas mais ricas tem acesso a educação de melhor qualidade, enquanto a classe pobre, a maioria da população, amarga  um ensino que está aquém do desejado para a ascensão pessoas na escala social. O Estado tem responsabilidade nesta realidade. Texto publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo, em 20 de julho.

Mais perversão na educação brasileira
NAOMAR DE ALMEIDA FILHO


A maioria pobre não somente financia a educação superior mas também subsidia a educação básica privada da minoria social privilegiada


Na sociedade contemporânea, cada vez mais complexa e diversificada, formação universitária aparece como fator de ascensão social.
Neste Brasil de absurdos e iniquidades, educação superior supostamente implica uma profunda perversão social.
Eis o argumento: no nível básico de ensino, aos pobres, por seu reduzido poder econômico, resta a rede pública, com precária infraestrutura e docentes desmotivados por baixos salários.
Ao contrário, as camadas médias e altas da sociedade, por capacidade financeira própria, financiam a educação de seus jovens em escolas privadas, com melhores condições de vencer o filtro competitivo do vestibular.
Nas universidades públicas, recebem gratuitamente educação superior de qualidade, enquanto os pobres são obrigados a pagar caro em instituições privadas.
Essa análise oculta dois equívocos e uma falácia.
O primeiro equívoco refere-se ao conceito de gratuidade, como se pudesse existir alguma atividade, realizada com eficiência, sem custos estruturais e operacionais.
A universidade pública, dada sua missão social de excelência acadêmica, é cara e longe está de ser gratuita. É, de fato, pré-paga pelo orçamento público, constituído por impostos, taxas e também por contribuições sociais.
O segundo equívoco é achar que, "por capacidade financeira própria", as classes abonadas preparam seus jovens para ter acesso à universidade pública.
Isso não é verdade. No Brasil, importante parcela das despesas educacionais retorna às famílias com maior nível de renda sob a forma de descontos e restituição de impostos; dessa forma, enorme (mas oculta) renúncia fiscal subsidia a educação privada de seus filhos, o que lhes facilita predominar na educação superior pública.
A falácia encontra-se na premissa de que o Estado é sustentado por toda a sociedade, igualmente.
A estrutura tributária brasileira é, em si, importante fator de desigualdade social. Proporcionalmente à renda, os pobres contribuem para custear a máquina estatal, em todos os níveis e setores de governo, mais do que contribuintes de melhor situação econômica.
Dados do Ipea revelam que os mais pobres pagam 49 % de sua renda em impostos, enquanto os mais ricos contribuem com apenas 26 % da sua receita.
Ciclo vicioso, tripla perversão social. A maioria pobre não só financia a educação superior mas também subsidia a educação básica privada da minoria social privilegiada, que, não fossem as ações afirmativas, ocuparia a maior parte das vagas públicas.
Do ponto de vista da reprodução social, a formação daqueles oriundos da classe social detentora de poder político e econômico se dá, nas universidades públicas, em carreiras de maior retorno financeiro e prestígio social.
Por analogia ao conceito de mais-valia, a ideia de mais-perversão pode ser útil para entender e ajudar a superar a iniquidade social que tanto nos envergonha.
O estancamento da renúncia fiscal de despesas escolares contribuirá para resgatar a dívida social da educação, entrave ao desenvolvimento econômico e humano de nosso país.

NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, doutor em epidemiologia, pesquisador 1-A do CNPq, é reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e membro do Observatório da Equidade do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social).

Nenhum comentário:

Postar um comentário